o olhar passa entre desolado, triste e indiferente, um olho grande que dá vontade de tocar
agora já passou há tempo e não posso fazer nada além de recordar e transfigurar sensações
deixe-me começar de uma vez
não me vi, era como se não estivesse ali, em meio ao rio barrento onde bois faziam as vezes do peixe-boi, pulavam dentro da água e atravessavam até a outra margem
eu fiquei no meio, acompanhando aqueles grandes bichos pra lá e pra cá, pra lá e pra lá, seus corpos eram mais do que estranhos, o chifre que saía de suas cabeças parecia mole, eles inteiros eram molengas
a água barrenta não tinha temperatura, o chão não tinha textura, os bois não faziam barulho
no instante seguinte eu já estava na minha cozinha, assim mesmo, sem explicação e sem contestação
novamente não eu mas minha presença
sentado na minúscula mesa o meu falecido pai, meu querido pai, saudades, queria um último abraço, um último grito de gol, um último momento feliz, até mesmo um tchau, o que temos no entanto é meu falecido pai querendo tomar café da manhã logo na minha casa, se tiver água na geladeira o senhor deve se alegrar, penso enquanto digito
acaba que não come, quer café e vejo uma pequena cafeteira, pequena e estranha, meu pai porém pega o pequeno pote de café iguaçu, uma colheirinha e sai a comê-lo puro, uma, duas, três colheradas e não é só café, vejo diretamente dentro do pote as larvas, os bichos podres, ele come tudo
não nos falamos, a bem da verdade nem sei se ele me viu
ele está igualzinho, usa óculos, uma camisa polo, o cabelo grisalho que ainda não é branco, não emagreceu nada desde que morreu
vou até a área de serviços, onde tenho algumas plantas, e encontro um vaso novo, baixinho e largo, a terra está estranha, não parece terra, parece um bolo, acho que é um bolo, não sinto cheiro, o que não chega a ser um privilégio do momento, é bolo ou terra, se for bolo podemos comer, se for terra talvez o pai coma igual, olho pra cozinha e não tem mais pai
vou colocar a mão na terra ou bolo para descobrir, vou esmagar com os dedos, vou sentir, vou, vou
hesito
onde estão os bois, onde está o pai
hesito
tem sol lá fora
hesito
hesito e não chego a descobrir
anoto para ver se acontece novamente, lembro e tento dar algum sentido, recorro a um texto e nada
da próxima vez tentarei me olhar no espelho